#5 - Quando um filho pede socorro.
Às vezes um pedido de socorro vem disfarçado de matemática.
Esse texto nasceu contra a minha vontade. Depois de um dia carregado emocionalmente, já deitada na cama, ele teimou em se formar sozinho. Então obedeci.
Textos como esse já estiveram no feed do meu antigo Instagram, em forma de desabafos, pondo pra fora o que me martelava por dentro.
A maternidade é o maior desafio posto na existência de uma mulher.
Não tem nada que nos prepare pra isso, não tem “Top 10 dicas pra ser boa mãe” que você possa seguir. Não tem livro que seja um manual seguro. Não tem curso que te prepare e te profissionalize. Não tem um expert para consultar e te dar as respostas exatas que você precisa.
Simplesmente é você por sua conta e risco, a base de muita intuição.
Nem a sua própria experiência prévia na maternidade é capaz de te direcionar com 100% de garantia.
A gente nunca é a mesma mãe pra todos os filhos. O tempo nos molda e não somos as mesmas pessoas com o passar dos anos, quiçá a mesma mãe. Sobretudo, porque cada filho é diferente do outro, o que torna as relações únicas e incomparáveis.
Vamos ao ocorrido.
Amora é minha menina do meio.
Nos seus 8 anos, ela é uma mistura de doçura com liderança (taurina, né amores!). O que tem de amável e leal, tem de ciumenta e possessiva. Tem um senso de justiça apurado e não hesita em cobrar o que lhe cabe por direito.
(Amora adora capivaras e pedras preciosas)
Além disso, Amora tem altas habilidades — e isso às vezes a assusta, tornando suas emoções mais difíceis de compreender e lidar.
Inclusive, recentemente, li um texto por aqui que tecia uma crítica ao que a escritora entendia por “privilegiar crianças com altas habilidades” em ambiente escolar. No conceito dela, soa injusto dar um tratamento diferenciado para uma criança que já tem uma habilidade cognitiva maior do que a média. Num primeiro olhar, isso pode parecer fazer algum sentido.
No entanto, o que a autora não viu, talvez por não ter experimentado a maternidade ainda, é que mesmo o que ela julga ser um privilégio (a alta habilidade em si) pode trazer sofrimento pra muitas crianças. O fato de elas terem a cognição avançada quase sempre anda acompanhado com uma dificuldade de lidar com as emoções que isso envolve. E toda criança em sofrimento merece (e deve) ser suportada e amparada.
De todo modo, há algo em que acredito que fale muito sobre as vivências da Amora no âmbito familiar: a ordem de nascimento.
Não há nada comprovado cientificamente, mas existe teorias sobre como a ordem de nascimento dos filhos pode impactar em suas personalidades, traçando perfis sobre o filho mais velho(primogênito), o do meio, o mais novo (caçula) e até sobre o filho único.
De uma forma geral, as teorias dizem que os primogênitos tendem a ser levemente mais inteligentes, líderes e responsáveis e ao mesmo tempo mais cobrados, pois são muito observados e visados pelos pais.
Já os caçulas, tendem a ser mais livres, criativos e as vezes mais mimados contando com uma tolerância maior dos pais, agora mais experientes.
Enquanto os filhos do meio ficam exprimidos entre os irmãos. São mais independentes, diplomáticos e muitas vezes se sentem esquecidos entre a cobrança ao mais velho e a preocupação com o caçula.
Eu e Fernando somos os mais velhos de nossas famílias. Nossos núcleos de convivência também são de pessoas com esse mesmo perfil. E na prática, a gente vivência bastante essa diferenciação entre o mais velho e o mais novo, que é justamente as nossas relações com nossos irmãos.
E eis que temos 3 filhos. E na nossa conhecida dinâmica, surge um elemento que até então era desconhecido pra nós: o filho do meio.
Nesse contexto voltamos à Amora.
Numa semana em que a irmã mais velha necessitou de atenção extra, mesmo que por motivos práticos, como ter que ir de urgência comprar novos calçados, por perder todos de uma vez só no último estirão.
Nessa mesma semana, onde ambas se preparavam pra uma competição de judô, o pai delas quis ter uma conversa individual com a mais velha, para orientá-la e sanar questões importantes que só ela demandava.
Amora viu e ouviu esses movimentos normais de pais se dedicando as necessidades de seus filhos. Mas nela, grita sempre o “mais e eu?”.
Terça-feira é o dia mais puxado da semana. Naquele dia tinha uma casa de cabeça pra baixo em processo de faxina. Eu pilotava insanamente o fogão e seus muitos processos de descasca, pica, refoga, cozinha, que demanda um almoço digno e saudável. As meninas estudavam para suas provas do dia seguinte e o caçula fazia sua tarefa. No fim do dia, ainda sobrava levar os 3 pro treino de judô. Enfim, muitas demandas.
E entre uma cebola picada, um legume descascando e uma panela no fogo, vem Amora com ar choroso, pois “não entendeu” a tal matemática. Justo ela e suas altas habilidades.
Eu já sabia o que me esperava e me comprometi com paciência.
Entre contas de adição e subtração e conceitos de massa, quilos e gramas, ela insistia em “não entender”. Não entender o que ela já tinha aprendido em aula, muito antes dos amigos. Mas ali, comigo, ela tremia o beiço e enchia os olhos de lágrimas por “não entender”.
Mas eu entendi.
Eu respirei.
Eu retomei a explicação. Uma, duas, várias vezes.
Quanto mais eu explicava, menos ela entendia.
Quanto mais eu mastigava pra ela, menos ela absorvia.
“-Será que vc não vê mamãe?”
“- Eu vejo, Amora.”
Ela não perguntou.
Eu não respondi.
A batalha era silenciosa.
A gente guerreava através da matemática e das unidades de laranjas e abacates. Eu me esgoelando de explicar com uma paciência sobrenatural e ela “não entendendo nada”.
Achei que eu tinha passado no teste, quando ela se deu por vencida e foi fazer os exercícios passados no computador. Testezinhos online. Mesmos conceitos. E os mesmos problemas voltaram. Respirei e pacientemente voltei a explicar, mas ela não me esperou acabar, colocou a alternativa certa e passou pra próxima.
Aproveitei o gancho pra mostrar a ela, que no fim ela já sabia (“- Viu? Venci!), ao que ela respondeu que só tinha chutado (“- Ainda não acabou, mamãe”).
Eu, adulta, ciente de que a matemática não era o problema (eu sabia!), caí na armadilha dela. Se for pra chutar, não faz sentido estudar! E explodi.
Só uma mãe que explode é capaz de entender o nível da minha derrota, agravada por ter suportado por tanto tempo. O coração disparado, aos berros, quase quebrei a tela do computador com a mão, tremia.
E olhar nos olhinhos assustados dela, me despedaçou, pois EU-SABIA.
Eu sabia e de nada adiantou.
Perdi essa batalha.
Mas eu sou mãe dela. E quando eu perco, ela perde. E isso eu não posso admitir. Me consumi em culpa durante toda a manhã.
E como eu disse em A desconexão da conexão, as vezes a gente precisa chegar ao fundo do poço, para no silêncio, a gente se ouvir.
Eu sabia (de novo, eu sabia) de onde vinha, pra onde ia e o que eu precisava fazer pra estancar o sofrimento da Amora e consequentemente acalentar o meu fracasso: - Amora, hoje você não vai no judô tudo bem? Precisamos ir até o shopping trocar aquele presente.
A única urgência que existia naquele compromisso, que inesperadamente apareceu na agenda conflitando com o treino de judô, era a de entregar a ela o que ela precisava: a minha dedicação exclusiva e atenção plena.
E antes mesmo de sequer ir pra escola, depois daquela confusão toda, Amora era outra criança só com a perspectiva do que estava por vir.
E assim foi, uma noite de terça-feira eu e ela.
Passeamos abraçadas, entramos em lojas, provamos lookinhos, tiramos selfies, como num filme água com açúcar da Sessão da Tarde. Eu, que sou super econômica, tirei o escorpião do bolso e comprei uma roupinha que ela não precisava, só pelo fato de ter ficado linda nela (na maioria das vezes não dou a mim mesma esse luxo). Escolhemos presentinhos pros irmãos também, que não foram incluídos no programa. E terminamos com um lanchinho que ela mais gostava: waffle de pão de queijo com requeijão.
E voilla, definitivamente era outra criança.
Nesses quase 11 anos de maternidade não canso de me impressionar como as crianças são maleáveis, elásticas e adaptáveis. Em como elas respondem as nossas mudanças de direção. E quando a gente acerta o alvo a reação é assustadoramente imediata. Quando a gente dá a eles aquilo que precisam, a resposta é instantânea.
A Amora chorosa, insegura, incompreendida, e com um enorme problema de matemática, daquela manhã cedeu lugar a Amora saltitante, serena, plena e com sorriso amarrado atrás das orelhas. Tudo se foi.
Não é fácil mudar um rumo ruim de uma criança, mas elas são incrivelmente responsivas. É tão rápido como um botão de “liga-desliga”.
Tampouco, posso dizer que é fácil de perceber quando um filho pede socorro. Quase nunca é linear, transparente ou óbvio. Nem sempre é lógico, nem sempre é a primeira reclamação que eles trazem. A gente tem cavar mais fundo pra alcançar.
No entanto a dificuldade maior está em administrar o que nos causa as emoções deles. Em compreender os nossos gatilhos, aceitar nossas dores, superar nossos ressentimentos e procurar na cura deles, a nossa cura também.
Eu sabia desde o primeiro problema de matemática. Mas eu não alcancei, não tive recursos, nem ferramentas, ali no furacão que se tornou aquela manhã.
Eu sabia que o problema da Amora era o desamparo que ela sente por ser a irmã do meio, que é a insegurança que ela tem por não saber lidar com as próprias emoções quando a cognição dela vai tão além. Eu sabia, que pro senso de justiça dela, soava muito injusto a irmã mais velha receber tanto e ela tão pouco, ainda que isso não ressoasse na realidade.
Eu vi tudo isso vindo. E, ainda sim, errei. Eu sabia que ela me pedia socorro, mas insisti na matemática.
O que me conforta nisso tudo é que se eles me pedem socorro é porque eles ainda acreditam que eu sou capaz de salvá-los. Dentre tantos erros, ainda tenho a confiança dos meus filhos e isso me motiva a recalcular e mudar a rota quantas vezes forem necessárias.
Me lembro quando o caçula nasceu. O pedido de socorro veio da mais velha, de alguma forma bagunçada e confusa, que já não me recordo mais. E numa manhã em plena segunda-feira, entre uma mamada e outra do bebezinho, eu salvei ela.
Nessa semana eu salvei a do meio.
E amanhã será dia de salvar o caçula.
Na verdade, quem é salva todos os dias sou eu. Eles me salvam do meu passado, das minhas certezas arrogantes, do meu orgulho. Eles me salvam do meu autoritarismo, da minha impaciência, da minha pressa, da minha razão inviolável e das minhas crenças. Eles me salvam diariamente da minha pior versão de mim.
Espero poder salvá-los pro resto da minha vida.
Mariana Ushli Poloni
E posso lhe dizer com a propriedade que o posto de filha do meio me traz: as vezes a gente quer só um colinho mesmo e uma escuta atenta pq o resto a gente tira de letra ❤
Que família linda e que texto lindo!